Uma Mulher Fantástica traz à tona um tema sensível, sem perder o viço cinematográfico.
Marina (Daniela Vega) se relaciona com Orlando (Francisco Reyes). Ele é muito mais velho que ela. Já quebrando o primeiro preconceito, vemos um sincero amor entre aquele senhor e Marina. Afastamos logo um relacionamento por interesse (mesmo vendo que ele tem um certo dinheiro). Fora essa questão, polêmica para alguns, Orlando veio de um casamento ainda presente e Marina é trans.
Esse trabalho da direção é feito de forma sutil, em duas ou três cenas. Uma delas a capital: Orlando morre. Tal acontecimento não é tão spoiler, pois ocorre no começo da história e é o mote do filme. As repercussões da morte de um homem, sob a ótima de uma mulher trans junto ex-família do amado.
Aqui há traço zero de caricatura. Vemos uma mulher trabalhando, tendo amigos, fazendo sexo. Outros filmes poderiam colocar a personagem à margem. Nesse sentido, Uma Mulher Fantástica se aproxima do nacional Corpo Elétrico.
Mas se no filme brasileiro praticamente não há a questão do preconceito envolvida, aqui a coisa muda de figura. De maneira drástica até. A violência é sentida de várias formas. E como facilmente nos envolvemos com a protagonista, a empatia é certeira.
A violência aqui parte da ignorância. Mas ela se desmembra em vários seguimentos: o médico que não sabe lidar com o nome social, a culpabilização pela morte do companheiro e a agressão física. Não duvido que a agressão psicológica seja tão ruim quanto, porém o impacto visual causado pela outra é um choque que me fez segurar a respiração.
Na camada mais explícita do roteiro vemos uma motivação à la John Wick. Mais do que dinheiro, reconhecimento e até respeito, é o cachorro que torna Marina irracional. Cão dado pelo parceiro e a outra banda da família dele não queria ceder. Esse arco dá ainda mais verdade.
Não tão na superfície, alguns signos corroboram com o título. Cenas que Marina projeta o ex-companheiro. A repetição da chave (e o que ela abre) e o detalhe do colar. A questão da água, presente logo no começo de formas variadas. Enfim, é uma obra rica nesse sentido. Capaz de ao revermos notarmos mais coisas…
Agora, o espelho é um elemento fundamental aqui. Diversas cenas reforçam essa imagem do duplo, complexidade tal que é condizente com a personagem. Vemos no meio da rua um espelho que reflete uma imagem bem distorcida de Marina, em momento preciso da trama. Mais para o final, temos Marina ante dois espelhos e cada um revela um lado dela.
Agora o ápice desse uso merece um parágrafo à parte. Vemos um pequeno espelho tampando a genitália de Marina. Há tanta coisa nesse pequeno detalhe que me fez derramar uma lágrima. Além de preservar, como deve ser, a intimidade (não sabemos se ali há um pênis ou se a operação foi feita), temos no reflexo, o rosto. Mostrando que o vale naquela questão é como ela se enxerga. Aplausos.
Quem também merece as palmas é Daniela Vega. A atriz, se houvesse justiça no Oscar, deveria ser indicada. Uma presença firme e segura de cada passo. Um olhar dos mais recheados de dores, sensações e decisão. Por também ser trans, Vega conseguiu dar um peso natural sem parecer pesado. Uma cena, apenas uma, há uma explosão (ela ela sobe em um local e grita). Esse rompante, que em outros filmes poderia soar um desvio fora do tom, aqui é essencial, cirúrgico.
As cenas finais quase me fizeram lamentar. Um corte perfeito poderia ser dado na conclusão da sauna. Porém o filme continuou, e quase me perdeu. Contudo, o que veio a seguir me impediu de traçar qualquer linha contrária.
O riquíssimo Uma Mulher Fantástica, portanto, só pode ser definido com o trocadilho simples: é um filme fantástico.