Baseado no romance histórico “The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society”, publicado em 2008 e de autoria de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows, A sociedade literária e a torta de casca de batata, novo original do Netflix, teve seu roteiro escrito por Don Roos, Thomas Bezucha e Kevin Hood (sendo este último roteirista também de filmes encantadores como Amor e Inocência e Uma noite real). Para a direção, foi escolhido o veterano Mike Newell, realizador sempre competente e com talento para entregar filmes ao mesmo tempo leves e profundos, com sensibilidade especial para relações humanas.
Se não, vejamos: Newell realizou diversos trabalhos para a TV na Inglaterra, desde a década de 1960, mas entrou definitivamente no imaginário dos cinéfilos ao dirigir, em 1994, Quatro casamentos e um funeral, filme que catapultou Hugh Grant ao estrelato e foi indicado e Melhor Filme e Melhor Roteiro Original no Oscar. Jogos de Ilusão (1995) é uma pequena pérola pouco conhecida de sua filmografia, e traz um estudo da Inglaterra do pós-guerra pelos olhos de uma menina que entra para uma trupe de teatro. Em 1997, Newell fez Donnie Brasco, filme biográfico-policial excelente e surpreendente na carreira do diretor, em princípio fora de seu ambiente mais confortável de sensibilidades britânicas.
Em O sorriso de Monalisa (2003), Newell faz uma espécie de versão feminina de Sociedade dos poetas mortos, novamente demonstrando um olhar sensível e preciso sobre a aprendizado e o estabelecimento de opiniões próprias. Newell consegue, ainda, adaptar para o cinema clássicos como O amor nos tempos do cólera (2007) e Grandes esperanças (2012) sem passar vergonha. Longe de serem obras-primas, como seus contrapartes literários, ambos os filmes são transposições mais do que dignas das páginas dos livros para o cinema.
Mesmo em filmes mais voltados ao grande público, como Harry Potter e o Cálice de Fogo (2005) ou Príncipe da Pérsia: as areias do tempo (2010), Newell consegue manter seu bom padrão – e caiu como uma luva para o diretor fato de o quarto episódio da série de Harry Potter envolver os primeiros “sintomas” mais óbvios, nos três personagens principais, das paixões da adolescência.
Filmes históricos, com personagens femininas de destaque e boas doses de sensibilidade não-apelativa: as forças de Newell estão todas presentes na A sociedade literária e a torta de casca de batata. Não se engane com o título exótico: não se trata de uma comédia pastelão, mas de um drama/romance histórico que aproveita a ocupação, por parte dos soldados alemães, da pequena ilha de Guernsey, situada no English Channel (algo que aconteceu na vida real), para mostrar o impacto da presença de uma nação inimiga no cotidiano dos insulanos e, ao mesmo tempo, apresentar uma deliciosa história de amor aos livros.
O filme se passa em 1946, com alguns flashbacks para o período da Segunda Guerra. Vivendo em uma Inglaterra com ares de reconstrução e – finalmente – de algum otimismo, a escritora Juliet Ashton (Lily James) alcançou o sucesso durante a guerra ao escrever colunas cômicas sob o pseudônimo de Izzy Bickerstaff. Bem sucedida, ela tem como editor Sidney Stark (Matthew “Ozymandias” Goode) e namora um rico diplomata estadunidense (Glen Powell). Contatada pelo jornal The Times para escrever artigos sobre leitura, Juliet começa a receber cartas de um certo Dawsey Adams (Michiel Huisman), que pede ajuda para saber mais sobre um autor e conta que participa de uma sociedade literária (a que dá título ao filme), criada durante a ocupação alemã da pequena ilha de Guerney. Intrigada pelo curioso nome da sociedade (cuja origem é revelada para os espectadores logo na primeira cena do filme), ela inicia uma troca de cartas com Damsey e decide conhecer pessoalmente a pequena localidade.
A partir daí temos um filme que mistura o estranhamento e o fascínio mútuo entre a famosa visitante e os habitantes da ilha. Ao participar de uma reunião da sociedade literária, Juliet percebe que há mais histórias a serem descobertas e contadas do que ela imaginava.
Com personagens cativantes e verdadeiros – em contraste com a futilidade da elite londrina no meio da qual a protagonista se sente totalmente deslocada – a pequena Guerney seduz tanto Juliet quanto os espectadores do filme. Tudo isso tendo como molas propulsoras do roteiro o livro e a escrita: seja pela figura da protagonista-escritora, seja pela sociedade literária na qual os livros funcionam como construtor de elo de afeto entre pessoas muito diferentes, seja pela motivação de Juliet em registrar a cativante história da ilha, e o que isso revelará em sua própria personalidade.
Para os fãs saudosos de Downton Abbey, A sociedade literária… traz, além da própria Lily James (consolidando uma carreira cada vez melhor) e de Matthew Goode, as atrizes Jessica Brown Findlay e Penelope Wilton. Completam o elenco principal Tom Courtenay (responsável pelo correios e pela torta de casca de batata), Kit Conor como o jovem Eli, Katherine Parkinson (no papel de Isola, uma carísmática solteirona romântica) e Bronagh Gallagher (atenção fãs de The Commitments, lembram dela?).
É claro que o filme tem alguns probleminhas. Um pouco longo em suas duas horas, o filme ganharia com alguns minutos a menos para alcançar um ritmo perfeito. Além disso, há um certo grau de previsibilidade no desenrolar da história – algo que, se não prejudica muito a experiência, também não colabora para qualificar ainda melhor a obra.
Em meio a tantas produções originais do Netflix de qualidade duvidosa, A sociedade literária e a torta de casca de batata é uma belíssima exceção à regra, e entra no rol dos filmes obrigatórios para os bibliófilos e para os apaixonados pelas sensibilidades britânicas.
por D.G.Ducci
Após a II Guerra Mundial, escritora se interessa pelos residentes da pequena ilha de Guernsey e sobre sua sociedade literária, e decide escrever um livro sobre a experiência local com a ocupação nazista durante o conflito.