O Poço, dirigido pelo estreante em longas-metragem Galder Gaztelu-Urrutia e adaptado da peça de teatro de mesmo título, chegou à Netflix em momento mais do que propício, considerando as atuais circunstâncias decorrentes da pandemia de coronavírus, quando há quem estoque comida e remédios para além do necessário, sem considerar as necessidades dos mais vulneráveis. Embora a obra não tenha sido escrita ou produzida tendo a pandemia em mente, a força dos fatos eleva seu significado e dá novos contornos às alegorias e críticas sociais que apresenta ao público. Em termos gerais, trata-se de uma mistura de alguns elementos de Jogos Mortais, em relação ao gore, Expresso do Amanhã, em relação à luta de classes, e Parasita, em relação aos comportamentos dos diferentes níveis sociais. Por outro lado, O Poço vai além desses filmes na substância, mas fica um pouco aquém na forma.
Em O Poço, a literalidade diegética dos níveis, ou andares, do poço vincula-se à subjetividade das camadas (ou níveis) de interpretação. Se, mais superficialmente, este filme faz uma crítica ao sistema capitalista – representado pela administração – e às desigualdades sociais, uma análise mais profunda nos mostra que se trata de um debate mais filosófico e ético do que político e econômico, ainda quem ambos sejam parte indissociável da narrativa.
A mudança regular de níveis representa a possibilidade de mobilidade social, mas, ao mesmo tempo, constitui um teste de empatia a todos: se todos comerem ou consumirem somente o necessário, haverá comida para todos. Na prática, ninguém se preocupa com os níveis mais baixos (até esse ponto, temos crítica e interpretações óbvias), enquanto as pessoas no fundo do poço precisam tomar atitudes desesperadas para se manterem vivas. Assassinato, canibalismo e individualismo são as moedas correntes para a sobrevivência naquele lugar, até a chegada do nosso protagonista, Goreng, interpretado por Ivan Massagué.
Goreng questionará o sistema e buscará promover uma ruptura, ou revolução, ao provar que a solidariedade pode prevalecer sobre a selvageria. Infelizmente, antes de alcançar essa autoconsciência, Goreng terá de passar adaptar-se ao sistema, ao enfrentar situações que colocam em xeque seus valores os valores éticos e morais. O que ele seria capaz de fazer para escapar da fome? Em sua jornada, Goreng cruzará com personagens que representam diferentes arquétipos; Triamagazia, Imoguiri, Bharat e Miharu, sem contar, claro, diversos pequenos coadjuvantes de diferentes níveis que são nada mais do que pequenos recursos de progressão da narrativa.
O Poço traz referências diversas; literárias, com Dom Quixote, seja pela escolha do livro como o objeto que Goreng levou para o poço, seja pela semelhança física entre o Dom Quixote de Cervantes e nosso personagem no filme, seja pela tentativa de lutar contra os moinhos, acompanhado de Baharat (seu Sancho Pança); bíblicas, quando se questiona se Goreng seria o Messias que libertaria as pessoas daquela tortura, além da referência a nomes bíblicos, filosóficas e políticas.
Depois de cinco parágrafos de discussão sobre a substância d’O Poço, parece que o tema se sobrepõe ao seu valor cinematográfico. Felizmente, essa afirmação não se sustentaria. Primeiro, o roteiro, a história e a narrativa são componentes da linguagem cinematográfica. Segundo, O Poço tem ótima execução, apensar do baixo orçamento. O gore e a violência, baseados em efeitos práticos, entregam o efeito perturbador desejado por Galder Gaztelu-Urrutia. As interpretações, especialmente a do protagonista a de Trimagazi, são de nível altíssimo, e a fotografia sombria e acinzentada cria a ambientação perfeita para o público.
ALERTA DE SPOILER. O final aberto poderá irritar muita gente, uma vez que vivemos na era dos finais explicados. Não sabemos se a criança, que representa a esperança e a vitória da solidariedade sobre o egoísmo chegará ao nível zero, assim como não sabemos se as futuras gerações ainda terão alguma esperança de viver em um mundo melhor. Goreng sacrificou-se para salvar as pessoas do poço (mais uma metáfora cristã), morreu e seguiu caminho com Trimagazi, que já se havia tornado parte da consciência de Goreng. O Poço não responde quem triunfará, mas a dúvida deixa viva a esperança.
Confira as nossas críticas dos lançamentos de 2020 no Brasil:
Dolittle
As Invisíveis
Cicatrizes
Antologia da Cidade Fantasma
Dilili em Paris
Maria e João – O Conto das Bruxas
O Preço da Verdade – Dark Waters
Sonic
O Grito
Quem me Ama, me Segue!
Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa
A Chance de Fahim
Jojo Rabbit
FILMES DE JANEIRO:
Açúcar
E Agora? Mamãe Saiu de Férias!
Com Amor Van Gogh – Um Sonho Impossível
Testemunha Invisível
Bad Boys Para Sempre
Os Órfãos
Judy: Muito Além do Arco-íris
Adoniran, Meu Nome é João Rubinato
Frozen 2
O Caso Richard Jewell
O Farol
Ameaça Profunda
Adoráveis Mulheres
Kursk – A Última Missão
Retrato de uma Jovem em Chamas
Os Miseráveis
O Escândalo
Um Espião Animal
1917
A Divisão
A Possessão de Mary
O Melhor Verão das Nossas Vidas
Um Lindo Dia na Vizinhança
Numa prisão em que os reclusos comem as sobras dos que se encontram nos pisos superiores, um homem tenta levar a cabo mudanças para que ninguém passe fome.